Aparente conversa banal comigo mesmo


Ele estava sentado como se dormindo de olhos abertos, olhos inexpressíveis, a não se importar com minhas súplicas. As pernas flexionadas ao máximo, sua cabeça repousada sobre os joelhos em perfeito ajuste de formas. Braços e pernas envoltos a um grande casaco de plumas pardas, ou brancas eivadas de terra árida. Primeiro movimento. A cabeça, somente ela, inclinou-se em minha direção. Analisei, perplexo, o tom de despedida imbuído naquele aceno. “Chegou minha hora”, praticamente disse. Prantamente, vi se erguerem alguns poucos centímetros, permanecendo neste momento apenas os largos pés pregados ao chão. O movimento galináceo da cabeça a fronte propiciou o primeiro passo ainda em encolhimento. Pareceu-me que as articulações da criatura, não ouso mais dar formas humanas a ela, precisavam de um certo exercício de concentração até poderem retomar à labuta. O movimento das pernas foi aumentando. As pernas em dobradiça avançavam no terreno de poeira. O ângulo de flexão dos membros aumentava a cada passada. Uma corrida de impulso não impulsiva. Pernas quase eretas, velocidade aumentada, cabeça invariavelmente para frente e para trás, dando bicadas no ar. Os largos pés em contato com a terra passaram a produzir um som seco e mortificante. Gosto da terra na boca. Lágrima e terra. Mais velocidade. Os braços, desembrulhados, descerraram-se em enorme envergadura. Grande varal de penas. Asas em início de batimento. Pés, flutuando, seguindo o resto do corpo em posição horizontal. Vista perdida. Para onde terá ido minha consciência? Para onde?



A Queda de Ícaro, óleo de Jacob Peter Gowy (1636-37).