Levei alguns demônios para uma caminhada hoje. Acabei deixando-os por lá, os coitados.

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Decurso
Correndo e pedalando com a frequência devida.
As pernas se fortalecem.
O coração nem tanto.
Oh No, de Andrew Bird, parece uma boa trilha tanto para passeios como para esconjuros.


Destinatário ausente

Tentei escrever uma carta sem remetente. Sem data, nome ou saudação. Não consegui. Ela teria, sim, a força de um desejo cadente. Certamente, muito certamente. Não pouparia pieguice alguma. Estariam lá, esparramados, meus deleites e, principalmente, minhas bazófias. Contaria histórias engraçadas, mas não dessas de cair no chão a galhofas. Não, não... Seriam contos de canto de riso. Despertaria à destinatária a lembrança de sorrisos bobos. Ela não lembraria exatamente dos motivos, apenas das sensações, assim como me recordo do seu beijo discreto em meu ombro enquanto andávamos de mãos dadas. Ninguém mais pôde ver. Nem eu mesmo pude. Quando exitei inclinar-me já era tarde demais. Movimentos cautelosos minha destinatária tinha. De certo, não faria nenhum grande elogio. Um obrigado, sim, educada que tenta ser, mas nada que pudesse garantir o convencimento de que tanto sinto esmorecer a cada dia. Ah... Lembraria de tecer comentários sobre minha caligrafia caprichada. Pois sim, escreveria tudo a próprio punho. Deixaria escapar certos vícios caligráficos, é verdade, mas coisa pouca, alguns erres e és reescritos uns sobre os outros, talvez um descuido na margem direita. E esperaria com afinco a resposta. Sim, esperaria o tempo que fosse por qualquer repercussão que fosse. Imaginaria o momento exato da abertura do envelope, do estranhamento causado por tamanha audácia, da leitura passageira e da leitura atenta. Feito isso, simularia diálogos de reencontros, falaria em alta voz nas noites de insônia o quanto estive a esperar e imaginar e sentir taquicardias. Mas não consegui, como já disse. Destinatário ausente. Nova tentativa de entrega. Destinatário ausente.


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Decurso
Esperando chegadas.
E partidas.


O que posso fazer?

Sim, é verdade. Prefiro escrever com tinta e papel: usar as mãos com liberdade cursiva, tocar o papel, cheirá-lo, ter cuidados criteriosos para não borrar ou errar sem que minhoquinhas vermelhas apareçam sob as palavras num passe de mágica.


Mas nem sei o endereço de todos vocês nem gosto muito de xerox. O que posso fazer?

Iremos tentar?

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Decurso
Querendo.
Precisando viajar.
Pegando carona num Land Rover 1951.


Vertiginosamente


Corre e corre
Tempo pouco
Ágil jogo de palavras

Os dedos das mãos
Interligados
Bons estranhamentos

"Eat me"
Está escrito
Cresce e cresce


Poemas esquecidos

Nesses tempos de prosa, ando encontrando alguns defeitos antes difíceis de perceber. É que, por mais que consigamos nos encarar no espelho com a frequência devida, é encarando rostos diferentes que conseguimos nos ver com mais clarividência. A situação é instantânea e espantosa, mas a revelação nos engradece com a mesma força.

E não sei, não há como saber, embora o tento, se a motivação maior de todo esse reflexo se dá pela feliz necessidade de se encontrar no olhar alheio, de se mostrar para esse outro olhar, que é tão singelo quanto misterioso, desconhecido das minhas faculdades ilusoriamente vividas.

Às vezes me vejo, e se trata, certamente, de uma pouco trabalhada imperfeição, como um conhecedor espetacular de si mesmo. Mas o autoconhecimento, ao menos quando tomado pela autoconfiança, pode gerar interpretações também instantâneas e, por isso mesmo, limitadas de um homem que luta a cada minuto com seus reflexos, na busca - vã, e daí? - de condições mais que perfeitas, como um verbo perfeitamente empregado  para a perfeita ocasião.

Sim, já tentei, mais que tentei, recusar tamanhos cálculos, tamanhas avaliações. Não dá para parar. Não quero parar. Ainda fermenta silenciosamente em meu peito a utopia de que tudo isso fará sentido, de que um dia encontrarei alguém que entenderá tudo isso de maneira mais natural que bolha procurando a superfície.