Dor crônica

Em O beijo não vem da boca, de Ignácio de Loyola Brandão. 5a edição. São Paulo: Global. 1987, p. 40.

- Este não veio do fundo, mas valeu.
- Vou te confessar, tive medo, sou tímido.
- Tímido? Não é o que parece, nem o que dizem. Olha, não valeu, não. Ainda me deve o primeiro beijo.
- É tão importante o primeiro?
- Mais que todos. No primeiro, a gente sabe se vai dar certo. O beijo não vem da boca.
- Vamos voltar, refazer o caminho?
- Pensa que a vida é uma fita de vídeo-tape? Pode apagar, gravar em cima? Deixa para lá. Quero uma coisa de você.
- Que tom dramático!
- Quero me apaixonar. Sinto uma vontade enorme, estou moída de vontade, até me dói o corpo. Estou disponível. Corre o risco?
- Não é risco.
- Comigo é.

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Decurso
Revendo anotações.
Encontrando referências literárias.
Reencontrando referências literárias.




Água fria em pontas de chapéu

Diz um velho deitado que são os mistérios dos planetas. É sabido até para o mundo mineral que criaturinhas de gorros engraçados habitam os céus numa extensão que abrange desde grandes constelações e supernovas, vez ou outra recolhendo-se na redoma de planetas-anões, até, por fim, em casos muito particulares e ainda inexplicáveis para os nossos botões, nuvens de estranhos tipos e formações.

"Um, dois, três, pula um de cada vez... Um, dois, três, pula um de cada vez..."

 A frequência das aparições, é bom que se diga, depende muito dos estados de espírito, dos regalos de menino, da quantidade de vezes que desejamos bom dia a velhinhos e velhinhas, das mãos não dadas, dos pés já dados e risos piegas que seja possível imaginar.

Mas essas estripulias sobre nuvens podem ser arriscadas. Quando se está sob a égide dos mistérios dos planetas-anões, tudo bem: as teorias gravitacionais sempre empreendem certa magia nas caminhadas e conversas amenas de quem quer que deseje por lá se aventurar. Não se pode encarar nuvens com a mesma serenidade. Não... Não... Muito esfumaçadas... Instáveis. Desrespeitam com rotina as Condições Normais de Temperatura e Pressão e, por consequência, provocam mudanças repentinas na direção dos ventos e dos rumos, viram uma bagunça só.

"Um, dois, três, pula um de cada vez... Um, dois, três, pula um de cada vez..."

Entropia formada. Algazarra, pulos, festa. Mas se sopram ventos confusos, de furacões que já passaram há um tempo, os gorrinhos se voam e as músicas mudam de lugar e tom. A cantoria, antes ecoada em alto e bom som - ao menos para os aventureiros -, vai ficando baixinha, sussurrada...

"O meu chapéu tem três pontas... Tem três potas o meu chapéu... Se não tivesse três pontas... Não seria o meu chapéu."

Sugeri que não eliminássemos logo de cara os chapéus, afeito que sou a eles. "Não. No chapéu não precisamos mexer ainda". Insisti que começássemos pelos pronomes possessivos. Eram mais curtinhos e poderíamos exercitar um sentimento de desapego, não sei. Tínhamos que entrar na brincadeira. Tudo bem que era uma brincadeira até então desconhecida, afinal veio de longe, sabe-se lá de que ventos. Mas continuamos. Uma palavra aqui, outra ali, e a música se esvaindo sem acabar.

Não sabemos quando acaba. Nem gorro nem chapéu ajudam nesses casos de ventos, nuvens e água fria.

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Decurso
Tentando consertar o chapéu, torná-lo maleável a circunferências.
Escutando baixinho.
Dormindo mais, o que é muito bom.
Tomando consciência do sonho no próprio sonho, o que é muito intrigante.






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Decurso
Da verdade inteira


Pesquisas empíricas do mês número seis

Não é cedo para conclusões. Apesar do ainda dia quatro, as bases de cálculo passaram longe de precipitadas. E os resultados são animadores. É certo, por puro cientificismo sentimental, que, nas manhãs do mês de junho, de cada dez velhinhos de bigode que encontramos caminhando na rua com uma sacola de pão à mão, nove, isso mesmo, nove deles respondem com um sorriso tímido se provocados por um sorriso igualmente acanhado. E mais: alguns até acenam para você - tudo bem se for um aceno, assim, bem de levinho. E mais (essa é para chorar): metade dos que acenam, pode perceber, que essa pesquisa foi realizada com especial afinco, usa óculos de lentes redondas. Não se pode aqui, e em momento algum, em qualquer lugar desse vasto mundo, negligenciar acontecimentos com essas circunstâncias. O que há com os bigodes e com as lentes redondas, a humanidade ainda não é capaz de investigar. Mas sigamos com os mistérios, que nem só de conclusões podemos viver. Não se sabe ao certo por que os clientes da padaria gostam mais da padaria no mês de junho. O que não é mistério é que quem gosta da canja quando ela vem carregada de legumes bate os pés de forma cadenciada. Será o forró que já se invade?... A sanfona te puxa para o dois pra lá, dois pra cá, não tem jeito. E a atendente da manhã, a Dona Fátima, fica toda serelepe. Veio até me perguntar se estava precisando de alguma coisa, se a canja estava gostosa. Carente que estou, fiquei esperando pelo cafuné ou qualquer afago que viesse. Coisas de junho.

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Decurso
Passando a gostar das manhãs silenciadas por sonhos alheios.
Imaginando os mesmos sonhos alheios.
Acordando mais do que devo com meus próprios.


A altitude e ato sublime dos grilos ao vento

- Não me leve a mal.
- É que o beijo que não é "é mais sublime que milhões".
- "Mesmo que milhões de amores mereçam mais"?

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Decurso
Ordenando o que é possível.
Recorrendo ao Houaiss, que é sempre possível:
altitude [Datação: 1868]: substantivo feminino. 2 . Derivação: por extensão de sentido. a maior altura, o ponto mais alto de uma elevação qualquer. 3. Derivação: sentido figurado. elevação, sublimidade;
expectativa [Datação: 1515]: substantivo feminino. situação de quem espera a ocorrência de algo, ou sua probabilidade de ocorrência, em determinado momento.
sublime [Datação: 1549] adjetivo. 2. superlativamente belo, esteticamente perfeito; grandioso, soberbo;
grilo [Datação: séc. XIII]: substantivo masculino. 4. Uso: informal. sensação de inquietude; preocupação, desassossego. Ex.: na hora de escolher, ficava cheia de g.
vento [Datação: séc. XIII]: substantivo masculino. 1. o ar atmosférico em movimento natural.


E as agulhinhas vão invadindo, uma por uma, vértebra por vértebra, numa instalação memorável de cura espinhosa.

Não ouso movimentos repentinos. Nem é possível. O feto se recolhe num lençol fino e bom de tocar, a espera de consciência e discernimento. Não há pressa.

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Decurso
Paciente.