Destinatário ausente

Tentei escrever uma carta sem remetente. Sem data, nome ou saudação. Não consegui. Ela teria, sim, a força de um desejo cadente. Certamente, muito certamente. Não pouparia pieguice alguma. Estariam lá, esparramados, meus deleites e, principalmente, minhas bazófias. Contaria histórias engraçadas, mas não dessas de cair no chão a galhofas. Não, não... Seriam contos de canto de riso. Despertaria à destinatária a lembrança de sorrisos bobos. Ela não lembraria exatamente dos motivos, apenas das sensações, assim como me recordo do seu beijo discreto em meu ombro enquanto andávamos de mãos dadas. Ninguém mais pôde ver. Nem eu mesmo pude. Quando exitei inclinar-me já era tarde demais. Movimentos cautelosos minha destinatária tinha. De certo, não faria nenhum grande elogio. Um obrigado, sim, educada que tenta ser, mas nada que pudesse garantir o convencimento de que tanto sinto esmorecer a cada dia. Ah... Lembraria de tecer comentários sobre minha caligrafia caprichada. Pois sim, escreveria tudo a próprio punho. Deixaria escapar certos vícios caligráficos, é verdade, mas coisa pouca, alguns erres e és reescritos uns sobre os outros, talvez um descuido na margem direita. E esperaria com afinco a resposta. Sim, esperaria o tempo que fosse por qualquer repercussão que fosse. Imaginaria o momento exato da abertura do envelope, do estranhamento causado por tamanha audácia, da leitura passageira e da leitura atenta. Feito isso, simularia diálogos de reencontros, falaria em alta voz nas noites de insônia o quanto estive a esperar e imaginar e sentir taquicardias. Mas não consegui, como já disse. Destinatário ausente. Nova tentativa de entrega. Destinatário ausente.


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Decurso
Esperando chegadas.
E partidas.


Um comentário:

Histórias de Raquel disse...

E que chegue logo esta sortuda destinatária! Texto lindo!